Compulsão por trabalho fica "mais fácil" na era do celular
FELIPE MAIA
DE SÃO PAULO
Victor quase terminou o casamento, Eduardo infartou e Rodrigo engordou 20 quilos em dois anos. Com idades entre 30 e 59 anos, os três são exemplos de profissionais que, depois de uma situação extrema, perceberam que falharam ao tentar equilibrar carreira e vida pessoal.
Talvez um dos "vícios" mais aceitos --e incentivados-- socialmente, a compulsão por trabalho ganhou uma nova escala desenvolvida por um grupo de pesquisadores da Noruega.
Vício em trabalho não se mede pelo número de horas no escritório
"Vício em trabalho é apenas a fumaça", diz psicólogo espanhol
Escala mede grau de vício em trabalho
Ståle Pallesen, professor de psicologia da Universidade de Bergen e um dos responsáveis pelo estudo, diz que traços da personalidade, como ambição desmedida ou comportamento obsessivo, são fatores determinantes nesse tipo de compulsão (veja o teste aqui ).
Ze Carlos Barretta/Folhapress | ||
Tiago Ritter checa e-mails ao acordar e antes de dormir e está sempre pronto para trabalhar |
Segundo os pesquisadores, os "workaholics" trabalham para reduzir sentimentos como culpa, ansiedade, desamparo ou depressão. Para identificar o vício, o teste se baseia em sintomas de outros tipos de compulsão, como alterações de humor e irritabilidade, que surgem quando o sujeito é impossibilitado de trabalhar.
A internet móvel também tem sua parcela de culpa. Com e-mails e documentos de trabalho na palma da mão e a qualquer momento, separar o tempo para si do tempo para o trabalho é cada vez mais raro para a maioria dos profissionais.
A psicóloga Cintia Bortotto, diretora da Consultoria em RH, diz que esses aparelhos atuam como um facilitador para a compulsão por trabalho. "A tecnologia traz novas nuances para esse problema, por que facilita você responder um e-mail à meia-noite ou usar o sistema da empresa para fazer um relatório no fim de semana. Mas o 'workaholic' mesmo vai para a empresa se não tiver essa disponibilidade", diz
Pallesen diz que ainda não está claro de que forma fatores estruturais, como o acesso à tecnologia, afetam quem tem essa compulsão. "'Eu acho que é mais fácil que algumas pessoas com certas características se tornem 'workaholics' ao serem lembrados constantemente sobre o trabalho e terem acesso fácil ao material da empresa por meio de smartphones e tablets. Mas precisamos pesquisar mais."
VÍCIO SEM DROGAS
Em grande parte dos casos, os efeitos do excesso de trabalho só são percebidos quando a saúde falha ou a vida pessoal entra em crise. "As pessoas só percebem [o vício] quando surgem sinais indiretos, como dificuldade para dormir, diminuição do desejo sexual e irritabilidade", diz o psicólogo espanhol Enrique Echeburúa, autor do livro "¿Adicciones sin drogas?" (vícios sem drogas?).
"Quase cheguei ao ponto de perder minha mulher, não conseguia vê-la. Ficava com o celular o dia todo e ligava o notebook à noite", lembra o engenheiro Victor Hugo Campanari, 30. Dos 26 aos 29 anos, ele trabalhou mais de 12 horas por dia. No restante do tempo, ficava disponível para a empresa por meio do celular ou do notebook.
"Eu era 'workaholic'. No início até achava legal. Recebia uma ligação de trabalho às 22h e pensava: 'Está vendo, estão precisando de mim'."
O presidente da agência de publicidade digital W3haus, Tiago Ritter, 33, admite que mergulha na vida profissional quando termina relacionamentos. "Em crises amorosas é muito comum. Para não pensar na história, você canaliza a energia para produzir."
No caso do engenheiro Eduardo Rashid, 59, o alerta veio depois de um infarto, há quatro anos.
"Eu tenho minha empresa e dava aulas à noite. Achava que a evolução do negócio dependia de mim, então trazia muito trabalho para casa. Depois que fui operado do coração, comecei a ver o que estava acontecendo e me perguntava: 'Por que faço isso? Por que essa coisa maluca?'"
Já para Ritter o corpo "falou" de um jeito mais ameno: ele quebrou uma perna durante uma partida de futebol, no ano passado.
"Eu estava na adrenalina do trabalho, de viagens, praticando um esporte para o qual não estava preparado e um pouco acima do peso. Veio essa mensagem de que eu deveria parar e rever esse ritmo."
Caio Kenji/Folhapress | ||
Victor Campanari trabalha menos e agora faz ginástica |
IGNORAR AVISOS
Outro comportamento comum é ignorar os avisos de amigos e familiares sobre o problema. "Meus amigos reclamavam que eu sumia, mas quando você está nessa adrenalina não escuta, não dá atenção", diz Rodrigo Geammal, 39, diretor-executivo da agência Elos Cross Marketing.
Por não se alimentar corretamente e não fazer exercícios, ele engordou 20 quilos em dois anos. A vontade de mudar veio no ano passado, com o nascimento da filha. "Comecei a ter um sentimento de culpa. Queria ter saúde para cuidar da menina."
Especialistas dizem que é difícil prever como a geração Y, de pessoas hoje na casa dos 20 anos, vai equilibrar a vida pessoal e o trabalho. Mas existe a percepção de que eles podem sofrer menos.
"O jovem tende a encarar o trabalho com mais propósito. Trabalha porque gosta, e não porque é obrigado", opina Lucas Liedke, diretor do núcleo de tendências da agência Box 1824 e um dos responsáveis pelo vídeo "All Work and All Play" (todos trabalham e todos brincam), sobre a relação da nova geração em relação à carreira.
Para Ivani Manzzo, "coach" de qualidade de vida, o jovem que tem bom preparo não tem medo de mudar. "Ele não se deixa escravizar, quando percebe que lhe estão 'tirando o couro', ele pula fora."
Lucas Lima/Folhapress | ||
Ritmo que não permitia pausas rendeu 20 kg a Rodrigo Geammal |
O primeiro passo para resolver o problema é o próprio profissional perceber o exagero, afirma José Roberto Leite, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
O engenheiro Campanari, por exemplo, buscou a ajuda de uma terapeuta e de uma "coach", que a ajudaram a planejar a mudança de vida. "Uma das coisas que percebi era que eu tinha dificuldades para delegar e queria resolver todos os problemas, em vez de apenas gerenciar."
Hoje, ele adotou uma rotina de exercícios físicos e trabalha menos horas por dia. Às 17h de uma terça-feira, quando falou com a reportagem, ele já passava pelas catracas da empresa automobilística em que trabalha.
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